a maternidade gera outra mulher
eu tive um pouco de pressa pra crescer. quando a gente não é mais adolescente, mas ainda não cresceu pra valer, parece que existe um lapso de tempo enquanto se tenta entender o que se é de verdade.
eu não sei direito quando a gente vira mulher. acho que a roda do existencialismo não para nunca, mas ela dá uma guinada quando a gente se reconhece, se entende, se situa em um tempo e espaço em que pensa: pronto, eu sou isso. mesmo. ou pelo menos eu acho. ou algo perto disso. ou mais ou menos isso.
comigo demorou um pouco. embora eu tenha escutado e visto desde cedo que a gente precisa ser independente, por muito tempo eu não sabia o que isso significava e representava.
não é uma coisa que a gente é obrigada a decidir. é um momento de percepção, de entendimento, de pertencimento, ou algo assim. acho que não é tão rápido quanto a gente pensa que vai ser. um dia você percebe que não é mais uma menina, mas não sabe se isso aconteceu ontem, anteontem ou naquele dia em que você colocava suas roupas pra secar.
pode ser que tenha sido qualquer hora entre uma banalidade e outra. ou também pode ter sido mais duro, quando se percebe as violências de gênero que nos encontram todos os dias, desde bem cedo na vida. ou pode ser quando você entendeu o que te diferenciava das outras pessoas. e que isso não tinha nada a ver com sexo biológico.
a gente não vira mulher de uma vez só. a gente vira um pouquinho a cada dia. a cada enfrentamento. a cada violência. física, psicológica, emocional, simbólica. a cada consciência que a gente toma.
a gente também vira mulher de novo quando vira mãe. é verdade que a gente vira praticamente outra pessoa, mas esse ser mulher fica intenso, pulsante, urgente. a maternidade atropela o ser, a mulher, a profissional, a filha, e tudo o que você costumava ser até então. a mulher gera o filho, mas a maternidade gera outra mulher.
a maternidade é repetitiva, ela não consegue se calar. é a mulher que luta todos os dias para ganhar seu espaço. mas que percebe as coisas de outro jeito, que retoma um instinto que tava adormecido ou nem existia mesmo. ela aflora a intuição. e vê as injustiças de outro jeito. e a sororidade também.
o sistema te diz que você não sabe parir. a indústria, que seu leite é fraco. a pediatria, que não tem problema deixar chorar. é a mulher que nasce com a cria e já precisa enfrentar novas escolhas. inéditas, amedrontadoras, desafiadoras, e todas elas políticas. parir, amamentar, educar, alimentar, dividir, respeitar.
você é a mesma mulher de antes, combativa, presente, sonhadora. mas é outra. outra mais fera, mais compreensiva, mais enérgica, mais justa, mais seletiva, mais coerente.
e mais palmeirense (não custa nada dizer).
Mariana Beltramine